domingo, 30 de junho de 2019

Vibrio cholerae


UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA

MICROBIOLOGIA: NOÇÕES BÁSICAS - 2019/2


DOCENTE: Marcelo Ehlers Loureiro

DISCENTE: Chris Maciel Peçanha


Imagem 1. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vibrio_cholerae

O Vibrio cholerae (Imagem 2) é um bacilo Gram-negativo do Grupo O1 ou O139, móvel por flagelação polar, curvados em forma de vírgula, possuindo de 1,4 a 2,6 micrômetros de comprimento e pertencente à família VibrionaceaeFoi descoberto em 1883 por Robert Koch, e deve seu nome à sua aparência quando observado ao microscópio óptico.
V. cholerae pode ser encontrado naturalmente em diversos ecossistemas, na forma de vida livre ou aderido a superfícies de plantas, algas verdes filamentosas, zooplâncton, crustáceos e insetos. A espécie também pode ser encontrada dentro de comunidades multicelulares conhecidas como biofilmes, estruturas embebidas por uma matriz extracelular polissacarídica que as defendem das agressões ambientais.
A espécie V. cholerae é bem definida com base em testes bioquímicos e estudos de homologia de DNA, porém, apenas um grupo restrito de linhagens é patogênico ao homem.
    Quando toxogênico, coloniza o intestino delgado e  produz uma enterotoxina composta de cinco subunidades B que formam um poro para se encaixar em uma subunidade A, a toxina da cólera.

Imagem 2. Fonte: https://www.cdc.gov/cholera/index.html

   O V. cholerae é transmitido através da via fecal-oral, aderindo ao intestino humano após a ingestão de alimentos e, principalmente, água contaminados por fezes de pessoas com a doença (Imagem 3). A ecologia da água é importante devido a estreita associação do V. cholerae com águas superficiais e a população interagindo com a água.

Imagem 3. Fonte: https://alagoasreal.blogspot.com/2018/03/iemen-1084065-casos-de-colera-ate-26-de.marco.2018.oms.html


Sobre a Cólera

A cólera é uma grave doença diarreica epidêmica e aguda, podendo evoluir para desidratação severa em virtude das perdas hídricas e eletrolíticas decorrentes dos vômitos e diarreia aquosa que possui característica "água de arroz", choque hipovolêmico, coma e morte. Trata-se de um grande problema de saúde pública enfrentado pelos países em desenvolvimento, particularmente associados às condições sanitárias precárias.
A infecção pode ser leve ou ocorrer sem sintomas em cerca de 75% dos casos. Em cerca de 5% das pessoas infectadas o quadro pode ser grave, manifestando-se por diarreia líquida e profusa, vômitos e cãibra nas pernas. Pode causar óbito devido à intensa perda de líquidos do corpo (desidratação) e choque, e por isso requer tratamento, imediato. É considerada uma doença de extrema virulência. Os sintomas podem aparecer após contato com a fonte de infecção, de poucas horas até cinco dias, em geral, de dois a três dias.


Fonte: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera


Epidemiologia

Uma característica epidemiológica específica da cólera é seu surgimento em padrão sazonal regular em áreas de infecção endêmica e em surtos, geralmente simultâneos e com focos distintos. Toda suspeita de cólera é de notificação obrigatória no prazo de 24 horas, para que todas as medidas sanitárias sejam estabelecidas para controle e prevenção de novos casos.


Diagnóstico diferencial

Diarreias agudas de outras etiologias podem evoluir com síndrome coleriforme como, por exemplo, as causadas pelo Escherichia coli enterotoxigênica. É necessária realização de diagnóstico diferencial com as síndromes disenteriformes causadas por amebas e bactérias, enterite por vibriões não aglutináveis, febre tifoide e a forma álgida da malária maligna ou tropical ( onde são encontradas grandes quantidades de P. falciparum dos capilares viscerais da mucosa intestinal, podendo simular a cólera). Em alguns casos, pode ser necessário, conforme anamnese e antecedentes epidemiológicos, descartar a retocolite ulcerativa grave e envenenamento pelo arsênico e antimônio.
Assim, tanto nas formas graves de cólera, como nas moderadas, o diagnóstico diferencial deverá comparar o quadro clínico com os dados epidemiológicos disponíveis. 

  • Os principais agentes etiológicos responsáveis pela clínica de diarreia aguda são:


A - Diarreias por bactérias
Escherichia coli, Shigella, Salmonella não typhi, Campylobacter, Yersínia e outros.
B - Diarreias virais
Rotavírus, Norovírus e Adenovírus entéricos tipos 40 e 41
C - Diarreias por protozoários
Giardia lamblia (mais freqüentemente), Entamoeba histolytica, Cryptosporidium. Podem ser concomitantes à infecção pelo Vibrio cholerae
D - Diarreias por helmintos
Strongylóides stercoralis e o Schistossoma mansoni na forma toxêmica.
E - Diarreias do HIV: Pode estar ligada a causas infecciosas e não infecciosas.
F - Toxi-infecções alimentares: Os alimentos podem ser contaminados por bactérias, toxinas, vírus, protozoários, helmintos e substâncias químicas. Os principais são Staphilococus aureus, Clostridium botulinum Bacilo cereus.

Diagnóstico Laboratorial

O diagnóstico laboratorial consiste na cultura através de amostras de fezes e vômitos, coletados em meios apropriados e transportados adequadamente, para identificação do V. cholerae O1 toxigênico e de sua caracterização sorológica. O Ágar TCBS é o meio de cultura utilizado para o isolamento de Vibrio cholerae (Imagem 4) e outros Vibrio enteropatogenicos. Caracteriza-se por colônias planas amarelas, 2-3 mm de diâmetro.


Imagem 4. Vibrio cholerae (Owaga) no TCBS Ágar (Ágar de tiossulfato, citrato, bílis e sacarose)
Fonte: https://microbenotes.com/?s=vibrio+cholerae


A atuação do laboratório na vigilância da cólera é essencial para:

1.Detectar a entrada do V. cholerae O1 em uma determinada área;
2.Monitorar sua presença contínua ou seu desaparecimento;
3.Determinar a sensibilidade aos antimicrobianos;
4.Identificar a presença do V. cholerae no meio ambiente.

Considerando-se a existência de cepas de V.cholerae O1 não toxigênicas, cabe também ao laboratório demonstrar se a cepa isolada é toxigênica, especialmente na monitorização do meio ambiente.


Tratamento

O tratamento inclui reidratação e reposição de eletrólitos perdidos, como sódio e potássio, usados ​​em processos bioquímicos para manutenção do corpo além da atenção à possível existência de outras doenças associadas e a história alimentar. O início da terapêutica independe dos resultados dos exames laboratoriais. Os medicamentos antidiarreicos, antiespasmódicos e corticosteroides não devem ser usados.


Manejo clínico do paciente

A observação de sinais e sintomas é fundamental para classificar o paciente quanto ao seu estado e grau de hidratação no decorrer da diarreia de qualquer etiologia, inclusive a causada pela cólera, e assim determinar o plano de reposição de fluidos e sais.
Pacientes com suspeita de cólera devem ser avaliados e tratados rapidamente. Sais reidratantes orais/soro de reidratação oral (SRO) e reidratação endovenosa (Imagem 5), reduzem a letalidade a menos de 1%. A principal via de reposição hídrica mais comumnete utilizada é a oral, a via endovenosa fica reservada para os casos mais graves.

Imagem 5. Fonte: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera
A observação permanente do paciente é obrigatória, pois o paciente com cólera pode perder rapidamente grandes quantidades de líquido (até 2 litros por episódio de diarreia). O grau de desidratação do paciente e a aceitação de líquidos por via oral deverão sempre orientar o tratamento.
Antibióticos são indicados para os casos graves, podendo se utilizar tetraciclina, doxiciclina, azitromicina, eritromicina ou ciprofloxacina. Sempre que possível a  cultura e antibiograma deve ser realizada para reorientar a conduta, se identificar resistência ao antibiótico em uso.

Critérios para internação

Recomendam-se os seguintes critérios para internação de pacientes:


1.Presença de desidratação grave, com ou sem complicações;
2.Com patologias sistêmicas associadas como diabetes, hipertensão arterial sistêmica, cardiopatias e outras;
3.Crianças com grave desnutrição;
4.Idosos;
5.Gestantes;
6.Desacompanhados portadores de doenças crônicas;
7.Residentes em locais distantes que não tenham tolerância para hidratação oral plena.


Ações de vigilância epidemiológica



Os objetivos da vigilância são: 
  • Identificar precocemente casos e surtos;
  • Impedir ou dificultar a propagação da doença;
  • Reduzir a incidência e a letalidade da doença.



A experiência internacional mostra que há dificuldade em evitar a introdução da cólera em países ou determinadas áreas. Entretanto, sua disseminação pode ser controlada, especialmente, por meio de infraestrutura adequada de saneamento (Imagem 6), isto é, pela existência de sistemas de água (água tratada) e rede de esgoto, assim como, de um sistema de vigilância epidemiológica capaz de identificar,  precocemente, a introdução de casos e a ocorrência de surtos.


Imagem 6. Fonte: http://www.tratabrasil.org.br/blog/2018/11/06/por-dentro-do-ciclo-completo-do-saneamento-basico/


Medidas de controle

As principais medidas de controle da cólera visam:

1. Garantir o acesso da população aos serviços de diagnóstico e tratamento, bem como a qualidade desses procedimentos;
2. Garantir os procedimentos de limpeza e desinfecção nos serviços de saúde com vistas a prevenir a disseminação da doença nos serviços e entre os profissionais de saúde;
3. Garantir o destino adequado e tratamento dos dejetos;
4. Garantir a coleta e destino adequado do lixo;
5. Promover a vigilância dos casos;
6. Promover a vigilância dos meios de transporte como terminais rodoviários, ferroviários, portos e aeroportos;
7. Promover medidas que visem à redução do risco de contaminação de alimentos, em especial do comércio de alimentos por ambulantes, ou da venda de frutos do mar;
8. Promover a divulgação da doença e outras atividades educativas junto à população e especialmente nas áreas de risco para prevenção e controle da doença.


Curiosidades

  • Aceita-se que sete pandemias distintas de cólera ocorreram desde o início da primeira pandemia em 1817.
  • Surtos de cólera causam cerca de 120.000 óbitos anualmente em todo o mundo, sendo as crianças as mais acometidas.
  • Vários eventos recentes que marcam a importância epidemiológica da doença incluem:
  • O ressurgimento da cólera na América Latina em 1991;
  • O surto explosivo de cólera entre os refugiados ruandeses em Goma, no Zaire, que resultou em cerca de 70.000 casos e 12.000 mortes em 1994;
  • O surgimento de V. cholerae O139 no subcontinente indiano de 1992 a 1993;
  • A equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) atua em países subdesenvolvidos para controle da cólera (Imagem 7).
Imagem 7. Fonte: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera




Referências Bibliográficas

FARUQUE, S.M.; ALBERT, M.J. & MEKALANOS, J.J. - Epidemiology, genetics, and ecology of toxigenic Vibrio choleraeMicrobiol. Molec. Biol. Rev., 62: 1301-1314, 1998. Disponível em: https://mmbr.asm.org/content/62/4/1301.full

SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Saúde. Centro de Vigilância Epidemiológica. Doenças Transmitidas por Água e Alimentos. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde. Disponível em: http://portal.saude.sp.gov.br/resources/cve-centro-de-vigilancia-epidemiologica/areas-de-vigilancia/doencas-transmitidas-por-agua-e-alimentos/colera.html

WATNICK, P.I.; LAURIANO, C. M.; KLOSE, K.E.; CROAL, L.; KOLTER, R. The absence of a flagellum leads to altered colony morphologybiofilm development and virulence in Vibrio cholerae O139. Molec. Microbiol.  Jan;39:223-35, 2001. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/11136445.

Centers for Disease Control and Prevention (CDC), CholeraDisponível em: https://www.cdc.gov/cholera/index.html


García-Lázaro. Cólera y otras infecciones del género Vibrio. España: Unidad de Gestión Clínica de Enfermedades Infecciosas, 2010. Disponível em: https://www.medicineonline.es/es-colera-otras-infecciones-del-genero-articulo-S0304541210700688


https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera


HENRY, John B, (ed). Clinical Diagnosis & Management by Laboratory Methods. USA: Saunders, 20th Edition, 2001.




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