UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA
MICROBIOLOGIA: NOÇÕES BÁSICAS - 2019/2
DOCENTE: Marcelo Ehlers Loureiro
DISCENTE: Chris Maciel Peçanha
O
Vibrio cholerae (Imagem 2) é um bacilo Gram-negativo do
Grupo O1 ou O139, móvel por flagelação polar, curvados em forma de vírgula, possuindo de 1,4 a 2,6 micrômetros de comprimento e pertencente à família Vibrionaceae. Foi descoberto em 1883 por Robert Koch, e deve seu nome à sua aparência quando observado ao microscópio óptico.
O V. cholerae pode
ser encontrado naturalmente em diversos ecossistemas, na forma de vida
livre ou aderido a superfícies de plantas, algas verdes
filamentosas, zooplâncton, crustáceos e insetos. A espécie
também pode ser encontrada dentro de comunidades multicelulares conhecidas como
biofilmes, estruturas embebidas por uma matriz extracelular polissacarídica que
as defendem das agressões ambientais.
A espécie V. cholerae é
bem definida com base em testes bioquímicos e estudos de homologia de DNA,
porém, apenas um grupo restrito de linhagens é patogênico ao homem.
Quando toxogênico, coloniza o
intestino delgado e produz uma enterotoxina composta
de cinco subunidades B que formam um poro para se encaixar em uma subunidade A, a toxina da
cólera.
O V. cholerae é
transmitido através da via fecal-oral, aderindo ao intestino humano após a
ingestão de alimentos e, principalmente, água contaminados por fezes de
pessoas com a doença (Imagem 3). A ecologia da água é importante
devido a estreita associação do V. cholerae com águas
superficiais e a população interagindo com a água.
Imagem 3. Fonte: https://alagoasreal.blogspot.com/2018/03/iemen-1084065-casos-de-colera-ate-26-de.marco.2018.oms.html |
Sobre a Cólera
A cólera é uma grave doença diarreica epidêmica e
aguda, podendo evoluir para desidratação severa em virtude das perdas hídricas
e eletrolíticas decorrentes dos vômitos e diarreia aquosa que possui
característica "água de arroz", choque hipovolêmico, coma e morte.
Trata-se de um grande problema de saúde pública enfrentado pelos países em
desenvolvimento, particularmente associados às condições sanitárias precárias.
A infecção pode ser leve ou ocorrer sem sintomas em cerca de 75% dos casos. Em cerca de 5% das pessoas infectadas o quadro pode ser grave,
manifestando-se por diarreia líquida e profusa, vômitos e cãibra nas pernas.
Pode causar óbito devido à intensa perda de líquidos do corpo (desidratação) e
choque, e por isso requer tratamento, imediato. É considerada uma
doença de extrema virulência. Os sintomas podem aparecer após contato com a
fonte de infecção, de poucas horas até cinco dias, em geral, de dois a três
dias.
Fonte: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera |
Epidemiologia
Uma característica epidemiológica específica da
cólera é seu surgimento em padrão sazonal regular em áreas de infecção endêmica
e em surtos, geralmente simultâneos e com focos distintos. Toda suspeita de
cólera é de notificação obrigatória no prazo de 24 horas, para que todas as
medidas sanitárias sejam estabelecidas para controle e prevenção de novos
casos.
Diagnóstico diferencial
Diarreias agudas de outras etiologias
podem evoluir com síndrome coleriforme como, por exemplo, as causadas pelo Escherichia
coli enterotoxigênica. É necessária realização de diagnóstico diferencial com as
síndromes disenteriformes causadas por amebas e bactérias, enterite por
vibriões não aglutináveis, febre tifoide e a forma álgida da malária maligna ou
tropical ( onde são encontradas grandes quantidades de P. falciparum dos
capilares viscerais da mucosa intestinal, podendo simular a cólera). Em alguns
casos, pode ser necessário, conforme anamnese e antecedentes epidemiológicos,
descartar a retocolite ulcerativa grave e envenenamento pelo arsênico e
antimônio.
Assim, tanto nas formas graves de
cólera, como nas moderadas, o diagnóstico diferencial deverá comparar o quadro
clínico com os dados epidemiológicos disponíveis.
- Os principais agentes etiológicos responsáveis pela clínica de diarreia aguda são:
A - Diarreias por bactérias:
Escherichia
coli, Shigella, Salmonella não typhi, Campylobacter, Yersínia e
outros.
B - Diarreias virais:
Rotavírus,
Norovírus e Adenovírus entéricos tipos 40 e 41
C - Diarreias por protozoários:
Giardia
lamblia (mais freqüentemente), Entamoeba histolytica,
Cryptosporidium. Podem ser concomitantes à infecção pelo Vibrio
cholerae
D - Diarreias por helmintos:
Strongylóides
stercoralis e o Schistossoma mansoni na forma
toxêmica.
E - Diarreias do HIV: Pode estar ligada
a causas infecciosas e não infecciosas.
F - Toxi-infecções alimentares: Os
alimentos podem ser contaminados por bactérias, toxinas, vírus, protozoários,
helmintos e substâncias químicas. Os principais são Staphilococus
aureus, Clostridium botulinum e Bacilo cereus.
Diagnóstico Laboratorial
O
diagnóstico laboratorial consiste na cultura através de amostras de fezes e
vômitos, coletados em meios apropriados e transportados adequadamente, para
identificação do V. cholerae O1 toxigênico e de sua
caracterização sorológica. O Ágar TCBS é o meio de
cultura utilizado para o isolamento de Vibrio cholerae (Imagem 4) e outros Vibrio enteropatogenicos. Caracteriza-se por
colônias planas amarelas, 2-3 mm de diâmetro.
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Imagem 4. Vibrio cholerae (Owaga) no TCBS Ágar (Ágar
de tiossulfato, citrato, bílis e sacarose)
Fonte:
https://microbenotes.com/?s=vibrio+cholerae
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A atuação do laboratório na vigilância da cólera é
essencial para:
1.Detectar a entrada do V. cholerae O1
em uma determinada área;
2.Monitorar sua presença contínua ou seu
desaparecimento;
3.Determinar a sensibilidade aos antimicrobianos;
4.Identificar a presença do V. cholerae no
meio ambiente.
Considerando-se a existência de cepas de V.cholerae O1 não toxigênicas, cabe também
ao laboratório demonstrar se a cepa isolada é toxigênica, especialmente na
monitorização do meio ambiente.
Tratamento
O tratamento inclui reidratação e reposição
de eletrólitos perdidos, como sódio e potássio, usados em processos
bioquímicos para manutenção do corpo além da atenção à possível
existência de outras doenças associadas e a história alimentar. O início
da terapêutica independe dos resultados dos exames laboratoriais. Os
medicamentos antidiarreicos, antiespasmódicos e corticosteroides não devem ser
usados.
Manejo clínico do paciente
A observação de sinais e sintomas é
fundamental para classificar o paciente quanto ao seu estado e grau de
hidratação no decorrer da diarreia de qualquer etiologia, inclusive a causada
pela cólera, e assim determinar o plano de reposição de fluidos e sais.
Pacientes com suspeita de cólera devem
ser avaliados e tratados rapidamente. Sais reidratantes orais/soro de
reidratação oral (SRO) e reidratação endovenosa (Imagem 5), reduzem a letalidade a menos de 1%. A principal via de reposição
hídrica mais comumnete utilizada é a oral, a via endovenosa fica reservada para os casos mais graves.
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A observação permanente do paciente é
obrigatória, pois o paciente com cólera pode perder rapidamente grandes
quantidades de líquido (até 2 litros por episódio de diarreia). O grau de
desidratação do paciente e a aceitação de líquidos por via oral deverão sempre
orientar o tratamento.
Antibióticos são indicados para os
casos graves, podendo se utilizar tetraciclina, doxiciclina, azitromicina, eritromicina
ou ciprofloxacina. Sempre que possível a cultura e antibiograma deve ser realizada para reorientar a conduta, se identificar resistência ao
antibiótico em uso.
Critérios para internação
Recomendam-se os seguintes critérios
para internação de pacientes:
1.Presença de desidratação grave, com
ou sem complicações;
2.Com patologias sistêmicas associadas como diabetes, hipertensão arterial
sistêmica, cardiopatias e outras;
3.Crianças com grave desnutrição;
4.Idosos;
5.Gestantes;
6.Desacompanhados portadores de doenças crônicas;
7.Residentes em locais distantes que não tenham tolerância para hidratação
oral plena.
Ações de vigilância epidemiológica
Os objetivos da vigilância são:
- Identificar precocemente casos e surtos;
- Impedir ou dificultar a propagação da doença;
- Reduzir a incidência e a letalidade da doença.
A experiência internacional mostra que há dificuldade em evitar a introdução da cólera em países ou determinadas
áreas. Entretanto, sua disseminação pode ser controlada, especialmente, por
meio de infraestrutura adequada de saneamento (Imagem 6), isto é, pela existência de sistemas
de água (água tratada) e rede de esgoto, assim como, de um sistema de
vigilância epidemiológica capaz de identificar, precocemente, a
introdução de casos e a ocorrência de surtos.
Imagem 6. Fonte: http://www.tratabrasil.org.br/blog/2018/11/06/por-dentro-do-ciclo-completo-do-saneamento-basico/ |
Medidas de controle
As principais medidas de controle da
cólera visam:
1. Garantir o acesso da população aos
serviços de diagnóstico e tratamento, bem como a qualidade desses
procedimentos;
2. Garantir os procedimentos de limpeza
e desinfecção nos serviços de saúde com vistas a prevenir a disseminação da
doença nos serviços e entre os profissionais de saúde;
3. Garantir o destino adequado e
tratamento dos dejetos;
4. Garantir a coleta e destino adequado
do lixo;
5. Promover a vigilância dos casos;
6. Promover a vigilância dos meios de
transporte como terminais rodoviários, ferroviários, portos e aeroportos;
7. Promover medidas que visem à redução
do risco de contaminação de alimentos, em especial do comércio de alimentos por
ambulantes, ou da venda de frutos do mar;
8. Promover a divulgação da doença e
outras atividades educativas junto à população e especialmente nas áreas de
risco para prevenção e controle da doença.
Curiosidades
- Aceita-se que sete pandemias distintas de cólera ocorreram desde o
início da primeira pandemia em 1817.
- Surtos de cólera causam cerca de 120.000 óbitos anualmente em todo
o mundo, sendo as crianças as mais acometidas.
- Vários eventos recentes que marcam a importância epidemiológica da
doença incluem:
- O ressurgimento da cólera na América Latina em 1991;
- O surto explosivo de cólera entre os refugiados ruandeses em
Goma, no Zaire, que resultou em cerca de 70.000 casos e 12.000 mortes em
1994;
- O surgimento de V. cholerae O139 no subcontinente indiano de 1992 a 1993;
- A equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) atua em países subdesenvolvidos para controle da cólera (Imagem 7).
Imagem 7. Fonte: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera |
Referências Bibliográficas
FARUQUE,
S.M.; ALBERT, M.J. & MEKALANOS, J.J. - Epidemiology, genetics, and ecology
of toxigenic Vibrio cholerae. Microbiol. Molec. Biol. Rev., 62: 1301-1314, 1998. Disponível em: https://mmbr.asm.org/content/62/4/1301.full
SÃO PAULO.
Secretaria de Estado da Saúde. Centro de Vigilância Epidemiológica. Doenças Transmitidas por Água e Alimentos.
São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde.
Disponível em: http://portal.saude.sp.gov.br/resources/cve-centro-de-vigilancia-epidemiologica/areas-de-vigilancia/doencas-transmitidas-por-agua-e-alimentos/colera.html
WATNICK, P.I.; LAURIANO, C. M.; KLOSE, K.E.; CROAL, L.; KOLTER, R. The absence of a flagellum leads to altered colony morphology, biofilm development and virulence in Vibrio cholerae O139. Molec. Microbiol. Jan;39:223-35, 2001. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/11136445.
Centers for Disease Control and Prevention (CDC), Cholera. Disponível em: https://www.cdc.gov/cholera/index.html
García-Lázaro. Cólera y otras infecciones del género Vibrio. España: Unidad de Gestión Clínica de Enfermedades Infecciosas, 2010. Disponível em: https://www.medicineonline.es/es-colera-otras-infecciones-del-genero-articulo-S0304541210700688
https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera
HENRY, John B, (ed). Clinical Diagnosis & Management by Laboratory Methods. USA: Saunders, 20th Edition, 2001.
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https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/colera
HENRY, John B, (ed). Clinical Diagnosis & Management by Laboratory Methods. USA: Saunders, 20th Edition, 2001.
Ótima revisão. Parabéns!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirFicou perfeito!! Texto claro, coeso e rico em informações.
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